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Bruno Flavio
Bruno Flavio02/09/2024 22:15
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Deve-se ensinar programação nas escolas?

  • #POO

É um clichê na vida dos profissionais de educação ouvir que “deveriam ensinar (insira a profissão do interlocutor) nas escolas” e, dada a quantidade de vezes que ouve isso, costuma preparar um protocolo próprio para lidar com situações assim, a ser utilizado muitas vezes. Esses dias, por sinal, ao assistir a alguns vídeos do excelente Código Fonte TV, um dos principais canais brasileiros de programação no Youtube, apresentado pelo casal Adriano e Gabriela, ouvi novamente a velha proposta.

Apesar do clichê, não é tolo repensar a escola ou o que se deveria ensinar nela, contudo, pela minha experiência, o que se pede que ensine ou já está contemplado nas disciplinas existentes, ou poderia ser ensinado de forma indireta, sem a necessidade da inserção de uma nova disciplina na escola. Ainda assim, eu gostaria de discutir a proposta do canal — ensinar programação no ensino básico — porque concordo parcialmente com ela. Para tanto, abordarei alguns argumentos utilizados no vídeo, pela ordem em que aparecem, discutindo suas virtudes e problemas. Escolherei algumas frases que melhor explicitam esses pensamentos e, a partir delas, explorarei o que o casal diz.

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Início do vídeo até 5:55 minutos: o vídeo começa com o casal ressaltando alguns problemas atinentes ao mercado de trabalho e à economia brasileira, como os jovens “nem (estudam) nem (trabalham)” e o baixo número de jovens tupiniquins que sabem programar, por exemplo. Trata-se mais de uma introdução do que uma discussão detida a respeito dos temas. Inclusive, o próprio casal não se demora nelas e as evitarei por não estarem no cerne do que desejo discutir aqui.

Contudo, cabe ressaltar a relação feita entre economia e educação, pois ela pautará os argumentos do casal ao longo do vídeo. Dentre os vários modos de introduzir o tema do ensino de Programação no ensino básico, Adriano e Gabriela escolheram a via econômica, algo que seria trivial se os argumentos seguintes não proviessem dessa mesma via, mas eles recorrentemente provêm. Ao longo do vídeo, o acúmulo desse tipo de argumento faz parecer que o casal entende que “ensino básico” é o mesmo que “ensino para profissão”. A exemplo disso, até ao mencionar a importância das outras disciplinas, Adriano e Gabriela o fazem ressaltando que essas disciplinas são necessárias para a formação de outros profissionais. Dá-se importância à disciplina pela repercussão que seu ensino produz no mercado de trabalho, isto é, pelo fato dela contribuir ou não para a performance profissional desse aluno.

É claro, pode ser que esse entendimento seja somente o enfoque do vídeo ou que ele seja mesmo a perspectiva geral do casal sobre educação, não tenho como saber. Independentemente disso, criticarei essa perspectiva mercadológica apenas na medida em que seus problemas aparecerem nos argumentos dados pelo casal. Sigamos.

5:55 minutos até 8:40 minutos: é a partir desse momento que Adriano e Gabriela começam a levantar os argumentos em favor do ensino de programação no ensino básico. A esse respeito, é preciso ressaltar que, como eles falam em linguagem coloquial e sem se preocupar tanto com o rigor conceitual, algumas coisas em seu discurso soam ambíguas e não muito claras. Por exemplo, o ensino de programação resolve algo no que diz respeito aos jovens “nem, nem”? Fica subentendido que sim… De algum modo. Como o vídeo não tem a intenção de ser academicamente formal, então certas coisas são mais aludidas do que defendidas nos detalhes. Em função disso, vou dividir os tópicos levantados pelo casal de uma maneira que não é feito originalmente, a fim de destrinchar essas ambiguidades.

Dito isso, vamos ao primeiro argumento.

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“A programação traz com ela algo muito relevante do que só saber codificar — desenvolvimento de pensamento crítico: você saber resolver problemas” (6:13)

Esse é o primeiro argumento usado pelo casal, especificamente por Adriano. No contexto do vídeo, essa fala já soa um tanto ambígua, pois dá a entender que pensamento crítico e resolução de problemas seriam uma mesma coisa, algo facilmente contestável. Afinal, posso ser uma pessoa crítica que não sabe resolver nada — fazendo apenas “críticas destrutivas”, digamos assim — ou mesmo ser uma pessoa boa em solucionar problemas, mas nada crítica a respeito deles.

Independentemente dessa fala, que me parece só imprecisa e não propriamente errada, cabe questionar o que ela propõe quanto à criticidade do aluno. Quer dizer, a programação torna o aluno crítico? Como? Particularmente, tenho algumas ideias a esse respeito, então realmente gostaria de conhecer a resposta do casal; no entanto, quando Adriano detalha seu argumento, apenas fornece exemplos de como a programação ensina a resolver problemas. Ser crítico é somente isso? Pela fala de Adriano, parece que sim.

Vale retomar aqui o que dissemos sobre o ensino para profissão. Quando falamos em ensinar a resolver problemas, estamos falando de ensinar para o mercado de trabalho, certo? Convenhamos: ninguém afirma que o jovem deve “aprender a resolver problemas” querendo dizer que ele “deveria alargar seus horizontes culturais” ou que “deveria saber mais sobre o contexto da poesia no século vinte e um”. Ensinar a resolver problemas significa que a escola deve antecipar o mercado de trabalho, promovendo um ensino em que certas habilidades, aquelas que dizem respeito à profissões, serão estimuladas. O sucesso desse tipo de ensino seria medido pelo sucesso na carreira profissional, a despeito de qualquer conhecimento adquirido.

Dessa forma, não acho estranho que Adriano coloque o pensamento crítico como simples resolução de problemas. Ao que parece, sua perspectiva da educação é que ela deve servir ao âmbito profissional ou, mais especificamente, a um tipo de profissional, aquele especializado em resolver coisas. Afinal, há uma série de profissões que requerem primordialmente outras habilidades antes dessa capacidade de resolução, não? Um músico seria um “resolvedor de problemas” no sentido que Adriano coloca, por exemplo? Creio que não. Por mais que qualquer trabalho (ou atividade) envolva problemas, não me parece que essa seja a habilidade mais essencial dessa profissão, para ficarmos num único caso. Caso o exemplo do músico pareça deveras específico, podemos colocar outros: um intérprete seria um “resolvedor de problemas” nesse mesmo sentido? E um ilustrador? Um cozinheiro? Um fotógrafo? Em suma, poderíamos continuar citando profissões sustentadas noutros tipos de habilidades, mas creio que já provei meu ponto. Mesmo dentro de uma perspectiva mais mercadológica da educação, não me parece evidente que a resolução de problemas seja a principal habilidade a ser ensinada pela escola. E se questionarmos essa perspectiva, o que não convém fazer neste texto, o privilégio desse tipo de ensino se tornará ainda mais problemático.

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“Isso [ensinar programação] também vai melhorar o entendimento da Matemática” (8:00)

Feitas as críticas à noção de pensamento crítico, podemos agora destrinchar essa habilidade de resolução de problemas citada pelo casal.

Bem, não há dúvidas que a programação ensina a resolver problemas — de programação, mas ensinaria também a resolver quaisquer outros problemas? Solucionar problemas de TI facilita a resolução de todos os outros tipos de problemas, como uma ciência universal da resolução de problemas? Ou ela contribui para solucionar só alguns deles? Precisemos isso.

Por óbvio, como uma atividade intelectual, a programação utiliza e estimula o intelecto, o que pode contribuir com atividades similares. Ninguém duvidará de que, tal como o casal ressalta, a programação ajude no aprendizado de Matemática, por exemplo. Todavia, existe algo que melhora ainda mais o entendimento da Matemática: o ensino de Matemática. Assim, se queremos melhorar o aprendizado de Matemática, então não faria mais sentido que simplesmente aumentássemos a carga dessa disciplina? Ademais, mesmo que queiramos usar uma disciplina para estimular outra (fiquemos só na Matemática para não nos extendermos), por que não aumentar as aulas de Física ou Química em vez de inserir uma nova disciplina, com novos complicadores? Aliás, ainda que fôssemos incluir disciplinas porque elas que estimulam as que já existem, por que precisaria ser a Programação? Por que não Direito, Geologia ou qualquer outra? Seria necessariamente a programação a disciplina que melhor estimularia as demais? Quem fez e validou esse cálculo?

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“A programação é excelente para deixar o ensino da Matemática mais lúdico” (9:05)

Ainda nesse argumento de que programar facilita outras disciplinas, o casal elenca dois pontos que ilustrariam isso: a programação tornaria a matemática mais lúdica e ensinaria a colaboração. Creio que vale a pena abordá-los individualmente, a princípio, e depois mostrar o problema comum que carregam.

O primeiro ponto é bastante válido. Como Gabriela diz, a programação torna mesmo a Matemática mais lúdica. Contudo, o ensino lúdico da Matemática é um campo de longa tradição aqui no Brasil e que possui muita força dentro academia, conquanto não seja bem aplicado nas escolas. Há muito (muito) material mesmo a respeito de como ensinar jovens a calcular por meio de diferentes tipos de atividades. É uma pena que eu, Adriano e Gabriela não tenhamos sido formados por boas propostas assim. Como consequência disso, a Matemática não precisa de nenhuma outra disciplina para ser lúdica, sendo necessário apenas que as propostas que já foram desenvolvidas sejam mais amplamente divulgadas e praticadas.

O segundo ponto levantado pelo casal — que a Programação ensina a colaboração — é também muito válido. Pouca coisa no trabalho do programador envolve isolamento e a maioria de suas produções dialoga com a produção de outros. Entretanto, a colaboração não é exclusiva da Programação, nem é algo difícil de produzir em qualquer outra disciplina. Debates de qualquer disciplina envolvem colaboração, bem como pesquisas em grupo, produção de artefatos (do vulcão de papel machê a qualquer outra coisa) etc. Mesmo a junção de várias disciplinas num mesmo projeto não é característica exclusiva de nenhuma disciplina. Por sinal, nos últimos anos, o ENEM tem implementado cada vez mais questões multidisciplinares, obrigando as escolas a fornecerem esse tipo de ensino mais mesclado, por consequência. Enfim.

A meu ver, o problema em comum entre esses dois pontos é que eles não dependem da Programação. As habilidades que se diz que essa disciplina ensinaria — aprendizado lúdico e colaboração — não são exclusivas dessa disciplina, podendo provir da didática do professor. Como consequência disso, posso adequar esse modo de ensinar noutras disciplinas já existentes sem a necessidade de incluir uma nova. Façamos o exercício de imaginar: seria possível pensar num ensino de química colaborativo, com vários alunos participando de um mesmo experimento, por exemplo? Um ensino de Geografia colaborativo, com alunos ao ar livre fazendo mapeamentos, por exemplo? Penso que sim.

Por sinal, aqui no medium mesmo já deixei um texto apresentando uma atividade colaborativa em Filosofia, talvez a mais ensimesmada das disciplinas, que buscava ensinar o funcionamento do método científico. Bem dizendo, todas as disciplinas baseadas no método científico podem ser ensinadas de forma colaborativa, justamente porque o método científico é uma metologia de trabalho em grupo. Dessa forma, o argumento do estímulo à colaboração não é grande coisa, já que a colaboração não é colocada propriamente pela disciplina, mas pelo modo como é ensinada.

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“(…) direcionar o mindset que a programação cria em nossas mentes para resolução de problemas e para o pensamento lógico” (16:40)

A questão principal aí me parece ser a seguinte: existiria alguma contribuição que só a Programação ofereceria ou que ela ofereceria muito mais do que as outras atividades? O casal parece entender que se trata da ideia de resolução de problemas.

Entretanto, além dos problemas que já esmiuçamos, mesmo os procedimentos utilizados na programação para resolver problemas — como o desmonte do problema, o isolamento de suas partes e coisas assim — não são exclusivos, nem originários da Programação, mas das bases científicas e filosóficas da mesma, provindo de campos como a Lógica, a Filosofia e a Matemática. Logo, não seria melhor aprofundar tais disciplinas em vez de ensinar aquilo que deriva delas?

Enfim, embora eu já tenha adiantado algumas afirmações ditas depois dos 8:40, a maioria das coisas ditas a partir daqui lidam com objeções possíveis ao que o casal diz. Em geral, concordo com eles a propósito das objeções que rebatem, que dizem mais respeito à implatação de uma disciplina do que ao questionamento se ela deve ou não ser ensinada. Por isso mesmo, não as abordarei aqui; fogem um pouco do assunto.

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Devemos ensinar programação nas escolas? Algumas palavras a respeito: tendo feito minhas considerações até aqui, quero dizer que, embora discorde dos argumentos principais do Código Fonte TV, discordar deles não significa rejeitar o ensino de Programação; apenas determinados argumentos usados para defendê-lo. Na verdade, eu concordo absolutamente com um deles e o escondi propositalmente para recuperá-lo separadamente. Ei-lo:

“No mercado de trabalho, tudo o que a gente utiliza hoje utiliza de alguma forma a tecnologia. E você programando você abre sua mente, de certa forma, para saber como as coisas funcionam.” (6:27)

Além do fato do casal enfatizar demais a educação como algo cuja importância é medida pelo desempenho no mercado de trabalho, que é tópico um pouco mais opinativo e subjetivo, digamos assim, creio que minha discordância com Adriano e Gabriela se deva ao fato de que o que eles apontam como motivos para ensinar Programação sejam coisas que não dependam da Programação. Como já discutimos, trabalho em grupo, estímulo a outras disciplinas, ensino de resolução de problemas e tal, são coisas que podem ser ensinadas pelas disciplinas tradicionais. Dizer isso não significa defender que a Programação não possa participar dessa soma, mas, por princípio, ela é acessória.

Não obstante, há algo que as disciplinas tradicionais não ensinam, que é o que Adriano ressalta no comentário acima: o funcionamento da tecnologia digital (*). A filosofia pode fazer uns desvios na Lógica para tratar dos algoritmos, os cientistas até podem abordar o método científico, mas, convenhamos, não é a mesma coisa. Nenhuma disciplina do currículo escolar pode prometer o ensino dessa tecnologia por ela mesma. Acerca disso eu não só concordo com Adriano e Gabriela como também acho que esse argumento precisaria ser expandido (alô, filósofos da educação!).

A tecnologia digital é hoje uma presença inescapável na vida da maioria das pessoas e, infelizmente, o mais comum é que a acessemos somente na condição de usuários, isto é, de indivíduos que consomem serviços prontos, postos sob termos estabelecidos por outrem. Com isso, tornamo-nos consumidores duplamente apáticos, pois nos resta apenas escolher entre as opções que o mercado nos apresenta e, o pior, nem para tanto temos formação crítica. Somos compelidos diariamente ao mundo digital e, no entanto, nossa educação básica não nos fornece meios para entendê-lo ou contribuir com ele.

Sendo assim, defendo que a escola deva dar sua contribuição, fornecendo ao aluno uma base mínima de entendimento do mundo digital. Contudo, creio que essa base mínima não possa envolver apenas a Programação, pois ela é somente uma das partes desse mundo. Há outros temas que também precisariam ter lugar nessa “educação para tecnologias digitais” ou seja lá como queiramos chamar tal ensino: o funcionamento de uma rede, o funcionamento físico e digital da própria internet etc. Penso que há um desenho pedagógico a ser feito aí, tocando os diversos tópicos que, juntos, forneceriam uma base para compreensão e produção da tecnologia digital.

A meu ver, Adriano e Gabriela levantam vários temas interessantes, mas preterem o principal deles, que é justamente aquele em que a Programação oferta algo singular. E fazem isso porque pensam (circunstancialmente ou não) a educação a partir de uma perspectiva que é, sobretudo, mercadológica. Caso questionarmos os problemas contidos nessa perspectiva, porém, não se seguirá que a Programação não deva ser ensinada, mas que ela deva ser pensada de uma forma mais complexa, podendo oferecer mais do que uma habilidade profissional específica ou um impacto noutras disciplimas.

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Concluo com as palavras da própria tecnologia, pela boca do ChatGPT: é fundamental considerar a educação de forma mais ampla e integrada. A programação é, sem dúvida, uma ferramenta poderosa, mas deve ser vista como parte de um conjunto maior de conhecimentos que capacitem os alunos a se tornarem não apenas profissionais competentes, mas também cidadãos críticos e conscientes. O desafio, portanto, é encontrar um equilíbrio que enriqueça o currículo escolar, sem perder de vista a diversidade de habilidades e competências que a educação básica deve fomentar.

(*) Uso o termo “tecnologia digital” para ser específico. O termo tecnologia, tomado isoladamente, abrange uma porção de coisas, sendo que várias delas já são ensinadas na escola. A Programação, portanto, não é uma disciplina que ensine a tecnologia, pura e simplesmente, mas uma disciplina que ensina um tipo de tecnologia.

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Comentários (4)
Bruno Flavio
Bruno Flavio - 06/09/2024 00:35

Com certeza, Vinicius. Acho muito ruim que o jovem só aprenda a utilizar a tecnologia como usuário. Seria incrível se pudéssemos voltar o ensino para que o jovem pudesse de fato participar da construção da tecnologia, não apenas ser um utilizador passivo dela. Aulas de lógica, física, há uma porção de coisas aí que poderiam ajudar.

Bruno Flavio
Bruno Flavio - 06/09/2024 00:33

Muito obrigado, Wenderson :)

VM

Vinicius Moura - 03/09/2024 09:52

Ótimo artigo , acredito que se os conceitos de programação fossem abordados ao longo da educação básica com certeza a falta de profissionais habilitados e qualificados na área da tecnologia hoje não seria tão grande.

Wenderson Anjos
Wenderson Anjos - 03/09/2024 09:36

Adorei o seu artigo, parabéns!!